Luís Roberto Barroso: “Perdão imediato é uma medida negativa”

Por: Correio Braziliense

O ministro Luís Roberto Barroso encerra hoje a passagem na Presidência do Supremo Tribunal Federal com uma lista de realizações, algumas frustrações e uma página ainda a ser escrita. Após dois anos à frente do cargo, ele passará o mandato ao ministro Edson Fachin convencido de que deu contribuições importantes ao Judiciário brasileiro, tanto no comando da Suprema Corte quanto na presidência do Conselho Nacional de Justiça. Sobre esse último, Barroso se diz realizado com a adoção do Exame Nacional da Magistratura e as ações afirmativas para ampliar a presença de mulheres e de juízes negros.

Mas há questões ainda a resolver. Barroso ressente-se de não ter ajudado mais o país a encontrar a pacificação dentro do ambiente democrático. O seguidor do pensamento kantiano se diz otimista porque entende que o Brasil evoluiu no curso da história. E que o julgamento da trama golpista tem um papel fundamental nesse sentido, pois rompe com a tradição de golpes, contragolpes e anistia.

Sobre o futuro, o ministro se diz sereno. Pretende fazer um retiro — ele é adepto da filosofia espiritual Brahma Kumaris —, antes de decidir se permanece no Supremo ou segue outro destino. Fã incondicional de Chico, Caetano e Bethânia, não citou ao Correio se aprecia Zeca Pagodinho. Mas o verso do cantor resume bem o atual momento do magistrado nascido no Rio de Janeiro: “Deixa a vida me levar”.

O senhor acredita que o presidente Donald Trump, depois do rápido encontro com o presidente Lula na ONU, vai mudar sua posição em relação ao Brasil??

Se houver uma estratégia por trás do que está acontecendo, acho que não. Se tivesse sido um impulso de uma pessoa mais ciclotímica, aí pode ser que sim. Mas é uma coisa curiosa: depois de brigar tanto e dizer tanto, veio com “Eu tive uma química”. Mas o Lula é muito sedutor mesmo.

Mas foram 39 segundos de sedução….

Ah, mas em um segundo, com um olhar, quem já se apaixonou sabe. Um olhar pode resolver tudo. Mas é porque o Lula transmite uma coisa boa. Ele tem uma energia.

Por que diz isso?

Logo depois que o presidente foi eleito, antes de tomar posse, ele foi à minha casa. Um amigo em comum o trouxe para conversar. E a minha sogra, que é estrangeira, nunca teve muito interesse por política e não gostava dele. Em 10 minutos, estava aos pés dele, amor eterno. Ele é sedutor. Tem carisma, é empático. É capaz de dizer coisas, conversar com as pessoas. Não concordo com muitas coisas, mas gosto dele. E ele é uma pessoa agradável de conversar. Não é pretensioso, conta histórias. Ele deixa você à vontade.

No seu último discurso como presidente do STF, o senhor comentou a questão dos custos pessoais para os ministros do Supremo nesse imbróglio entre Brasil e Estados Unidos. Poderia explicar melhor?

O custo pessoal não tem a ver apenas com essa questão dos Estados Unidos. Ele já vem de antes. Vou dar um exemplo: entrei para o Supremo em 2013. Em 2014, teve a Copa do Mundo. Eu fui à final da Copa com a minha mulher e meus dois filhos, nós quatro sozinhos, na arquibancada do Maracanã. Era uma área mais reservada, mas fomos sem nenhum tipo de preocupação com segurança. Em 2016, fui à abertura dos Jogos Olímpicos com Teori Zavascki — saudoso Teori Zavascki — e meu filho. Nós três, sem nenhuma segurança, na arquibancada do Maracanã, vendo a abertura das Olimpíadas. Hoje em dia, eu só saio na rua com pelo menos três seguranças. Essa foi a transformação que ocorreu no Brasil. Esse é o custo pessoal que se manifesta nos momentos de ameaças que a gente recebe, em algum tipo de agressão.

Como são essas ameaças?

Teve um estado da Federação em que a casa onde eu estava foi cercada por 300 pessoas que ameaçavam invadi-la. Precisei sair em carro blindado. Fui cercado no aeroporto de Miami uma vez, às vésperas do 8 de Janeiro. Eu estava voltando para o Brasil. Tinha ido passar apenas o réveillon, porque minha filha estava estudando lá, e minha mulher já estava doente, inconsciente. Voltando para casa, fui cercado de forma muito agressiva. O custo pessoal entra aí, falando do meu caso. Mas depois que começou o inquérito do golpe com o ministro Alexandre, ele passou por situações piores que as minhas, e isso afeta os nossos filhos. Quando um ministro passa por isso, mal ou bem, nós escolhemos estar na vida pública. Mas quando atinge sua mulher, seu filho, sua filha, aí é algo que dói muito mais.

E depois veio a Magnitsky.

Outro custo pessoal… Quando falei em custos pessoais, é claro que depois veio a Magnitsky, que é um custo altíssimo. Porque uma coisa é não poder entrar nos Estados Unidos — esse é um poder discricionário do país. Mas aplicar a Magnitsky afeta a vida da pessoa em qualquer lugar do mundo. Esse é um custo pessoal alto. Portanto, eu me referia a esse conjunto de questões. Você passa a viver permanentemente preocupado com segurança.

Isso se deve a uma incompreensão do papel dos ministros do Supremo? 

Acho que isso se deve a uma maneira de fazer política que despertou um ódio que antigamente não existia na vida brasileira. Um modo de fazer política que extraiu o pior das pessoas e que liberou muitos demônios: raiva, agressividade, misoginia, homofobia, racismo, antiambientalismo. Houve uma liberação global de ódio, trazida por um tipo de populismo autoritário que piorou muito a qualidade das democracias em todo o mundo.

Acredita que isso vai continuar?

Eu sempre acredito que a vida vai melhorar. Eu sou um sujeito kantiano, e a visão kantiana da vida, de Immanuel Kant — que foi o grande filósofo do Iluminismo — é a de que a história é uma marcha contínua na direção do bem, da justiça e do avanço do processo civilizatório. Ela apenas não é linear. Então, às vezes, olhando da superfície, pode parecer que está piorando. Mas a história flui como um rio subterrâneo para onde tem que ir, e eu acho que esse caminho é o do aperfeiçoamento da justiça e do avanço civilizatório. E não digo isso por ingenuidade. Digo olhando para a história. O mundo vem de um tempo de sacrifícios humanos, de despotismos bárbaros, e hoje vivemos a era dos direitos humanos. Ainda não totalmente implementados, mas, atualmente, todos defendem os direitos humanos. Portanto, acho que avançamos. Talvez não na velocidade desejada, mas na direção certa. Só que a história é feita de avanços e de retrocessos. Certamente estamos vivendo um momento de retrocesso.

O senhor também falou sobre o avanço que ocorre quando o indivíduo trabalha em grupo, em colegiado. Todas as crises e ataques contra o Supremo mostraram um tribunal muito unido. Foi uma estratégia deliberada dos senhores ministros como uma forma de autodefesa?

Olha, estou aqui consultando a lista das coisas que conseguimos decidir. O tribunal se uniu em torno de algumas questões muito importantes. Antes, o tribunal havia se dividido, sobretudo em temas penais e no enfrentamento à corrupção. Ali se via um tribunal mais dividido. Mas depois, no governo passado, o tribunal se uniu para proteger as pessoas durante a pandemia. Houve um negacionismo significativo que colocava em risco a vida da população, e o Supremo interveio para autorizar estados e municípios a adotarem medidas que a União não tomava; para determinar a elaboração de um plano de vacinação; para tornar a vacinação compulsória; para impedir uma campanha do governo que incentivava as pessoas a voltarem às ruas e ao trabalho quando a OMS recomendava o distanciamento social; e para validar decisões dos estados que proibiam cultos religiosos no auge da pandemia. Então, o tribunal se uniu para proteger vidas. Esse foi, talvez, o primeiro momento em que a unanimidade se estabeleceu no Supremo Tribunal Federal.

E depois da pandemia?

Depois, diante do negacionismo ambiental, o tribunal também tomou decisões importantes em relação ao Fundo Amazônia e ao Fundo Clima, cujos recursos estavam parados em conta, embora fossem destinados a combater a mudança climática e o desmatamento — problemas globais. Parte desse dinheiro vinha da Noruega e da Alemanha, com destinação específica de acordos internacionais, e a ideia era deixá-lo parado em vez de investir em projetos. Nós intervimos também. Portanto, o tribunal começou a se unir em torno de pautas contra o negacionismo — primeiro da pandemia, depois ambiental. Para se ter uma ideia da má gestão da pandemia no Brasil: o país tem pouco mais de 2% da população mundial e registrou cerca de 10% das mortes. Esse foi o tamanho da gestão malfeita.

Qual foi o momento seguinte?

Depois, vieram os ataques à democracia, os ataques verbais ao Supremo e aos ministros. A questão do voto impresso nos uniu porque — eu estou absolutamente convencido disso, e por isso me empenhei tanto para impedir — era um dos pilares do golpe. Tratava-se de preparar o ambiente para contestar o resultado eleitoral em caso de derrota. A proposta era voto impresso com contagem manual e pública. Essa proposta foi rejeitada. Hoje, alguns negam, mas está nos registros. Eles têm um pouco de vergonha do que fizeram, mas a proposta era essa. Imagine: se essas pessoas mais radicais foram capazes de invadir o Supremo, o Congresso e o Planalto, o que não fariam em seções eleitorais, em que suspeitassem que estavam perdendo, com votos sendo contados manualmente? Sem mencionar que os votos teriam de ser transportados das escolas para algum outro lugar, podendo levar uma semana para a contagem, o que é inviável, pois as aulas precisam continuar. Portanto, o tribunal se uniu contra o voto impresso e, depois, contra outras medidas de esvaziamento de órgãos da sociedade civil.

E houve o tensionamento com o então presidente Bolsonaro.

Progressivamente, houve maior tensão entre o tribunal e o ex-presidente. Mas o Supremo se manteve firme e conseguiu, penso eu, evitar um golpe. Hoje, depois dos julgamentos, vemos todas as evidências de que havia um esquema para desacreditar o sistema eleitoral — muitas provas, inclusive, de ordens para alterar relatórios das Forças Armadas que haviam concluído não haver fraude. Ora, para que mandar mudar um relatório científico que atesta ausência de fraude? Apenas para criar um ambiente de descrédito do resultado eleitoral.

Vinte e sete anos é uma pena alta para o ex-presidente Jair Bolsonaro?

Olha, foram aplicadas as penas previstas na legislação. Mas é importante esclarecer: no Brasil, ninguém cumpre 27 anos integralmente. As regras de execução penal são bastante flexíveis, sobretudo em casos de bom comportamento. Mas as penas foram resultado do somatório dos tipos penais que a turma aplicou. Eu não participei desse julgamento, portanto não posso opinar sobre o mérito. No caso do 8 de Janeiro, participei dos primeiros julgamentos, porque eram no plenário. Ali, eu fixei uma pena um pouco mais baixa, porque não considerei, cumulativamente, golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito. Por isso, minha pena foi alguns anos menor. Mas prevaleceu a posição da maioria, que entendeu que houve os dois crimes. Então, acho que a pena é alta, mas é a pena prevista na lei.

O que foi o mais desafiador na sua presidência?

A minha presidência foi muito pacífica, tanto do ponto de vista interno quanto da relação com os outros Poderes. Do ponto de vista do relacionamento entre os Poderes, foi um momento de convivência independente, mas harmoniosa. No plano interno, também foi um período muito pacífico. O Supremo vive hoje um momento harmonioso, em que as pessoas se gostam, se admiram e se ajudam. Eu fui muito feliz por ter contribuído para isso, dando continuidade ao trabalho da ministra Rosa Weber, que exerceu uma liderança muito relevante nesse sentido. Portanto, considero que temos um tribunal pacificado em termos de convivência interna. Claro, houve momentos de tensão, como neste julgamento recente, em que o ministro Fux teve uma posição diferente — o que é legítimo, pois a independência judicial deve ser respeitada. Mas, no geral, a minha presidência foi sem atritos pessoais, o que já é uma grande conquista.

E na relação com a população?

Do ponto de vista da sociedade em geral, eu procurei otimizar a comunicação. Fiz um pacto pela linguagem simples: toda decisão plenária passou a ser acompanhada de uma explicação em uma página e meia, no máximo duas, informando o fato relevante, a discussão jurídica e o que foi efetivamente decidido. Acho que isso aproximou mais a sociedade do tribunal. Também me esforcei para dialogar com todos os setores. Conversei com o agronegócio, estive em Mato Grosso com representantes da Aprosoja, visitei comunidades indígenas, dialoguei com entregadores de aplicativo, com empresários da Fiesp e com sindicalistas da CUT. Eu sou uma pessoa que gosta de ouvir todos os lados e procuro agir com equilíbrio. O mundo vive tensões, o Brasil tem suas tensões, mas para mim foi um período muito feliz presidir o Supremo.

Cumpriu seus objetivos na presidência da Corte?

Consegui realizar quase tudo o que eu pretendia. Julgamos casos importantíssimos: responsabilidade das plataformas digitais, em decisão que considero a mais moderada e equilibrada do mundo; descriminalização parcial do porte de drogas, para enfrentar o hiperencarceramento de jovens primários e de bons antecedentes; segurança pública no Rio de Janeiro e a letalidade policial, com a definição do dever do Estado de retomar territórios dominados pelo crime; temas ambientais, julgados com unanimidade ou quase unanimidade; execução imediata das decisões do júri, para evitar a cena dolorosa de condenados saindo livres diante das famílias das vítimas; plano de dignidade mínima para o sistema prisional; e limites ao assédio judicial contra jornalistas. Realizamos ainda a desintrusão de 10 terras indígenas, com apoio do tribunal, das Forças Armadas e da Polícia Federal. Enfrentamos parte da litigiosidade na área da saúde, relativa ao fornecimento de medicamentos e tratamentos, tanto no setor público quanto no privado. Portanto, foi um período de muita produtividade em temas relevantes para o país.

E na presidência do CNJ?

No CNJ, que é onde se faz política pública, eu acho que conseguimos mudar o Judiciário. O sistema brasileiro vai ser outro, por medidas que implementamos. Criei o Exame Nacional da Magistratura, que é pré-requisito para inscrição em qualquer concurso da magistratura. Cada tribunal continuará a fazer seu concurso, mas só pode ser juiz quem tiver passado nesse exame, que estabelece um padrão nacional mínimo de suficiência. Isso também combate rumores de favorecimentos que cercavam alguns concursos. Agora, se o parente de alguém passar, ótimo, mas terá que ter passado pelo exame nacional.

E quanto à disparidade de gênero nos tribunais?

Outra medida importante foi a implementação da paridade de gênero nas promoções por merecimento para os tribunais de segundo grau, a partir de resolução já aprovada na gestão da ministra Rosa Weber, mas que não estava sendo cumprida. Houve resistências, sobretudo em São Paulo, mas conseguimos implementá-la com apoio do presidente do TJ-SP. A regra é simples: se um homem for promovido por merecimento, a vaga seguinte deve ser de uma mulher; se uma mulher ocupar a vaga anterior, pode haver outra mulher, até se atingir 40% de participação feminina, que corresponde ao percentual de juízas no primeiro grau. Hoje, elas são apenas 21% no segundo grau, em parte porque enfrentam barreiras estruturais e sociais.

E sobre cotas raciais?

Instituímos uma ação afirmativa para candidatos negros. Antes, a nota mínima para aprovação nos concursos era 5. No exame nacional, elevamos a nota para 7 na ampla concorrência, mas mantivemos 5 para os candidatos autodeclarados negros. Assim, não diminuímos a exigência, mas aumentamos o rigor geral, ao mesmo tempo em que possibilitamos inclusão. Já aprovamos 15 mil candidatos, sendo 4.500 negros, dos quais 750 receberam bolsas em cursos preparatórios gratuitos e 124 receberam bolsas de R$ 3 mil, custeadas pela iniciativa privada. Em pouco tempo, cinco desses bolsistas já passaram em concursos. Portanto, considero que as medidas mais importantes foram: elevar a qualidade do Judiciário, ampliar a equidade de gênero e aumentar a diversidade racial. Esses avanços terão efeitos de médio e longo prazo e, para mim, foram a parte mais relevante da minha gestão.

O senhor disse que conseguiu fazer quase tudo. O que faltou?

Eu gostaria de ter contribuído mais para pacificar o país. Acredito em uma sociedade em que pessoas que pensam diferente possam sentar à mesma mesa, conversar e expor argumentos de forma civilizada. Para mim, o Judiciário e a Constituição devem integrar todos, porque o país tem espaço para todos. As divergências devem ser debatidas civilizadamente, e a cada tempo deve prevalecer a vontade da maioria. Esse ambiente de raiva e ódio que ainda existe faz muito mal ao país, às pessoas e a mim também. Eu queria ter avançado mais nessa agenda de resgate da civilidade.

Como fazer isso na prática?

Dou um exemplo: convivo aqui no Supremo com o ministro André Mendonça. Temos visões muito diferentes em várias matérias, mas eu gosto dele, o admiro e somos amigos. Portanto, a divergência não impede a convivência respeitosa. Minha ideia era que esse modelo se replicasse para o Brasil. Nas eleições, por exemplo, o presidente Lula e o governador Tarcísio poderão disputar, cada um com suas propostas. Mas o debate deve ser civilizado, qualificado e sem ódio. Acho que até melhoramos nesse aspecto, mas ainda resta um resíduo de raiva e ressentimento, inevitável diante dos julgamentos do 8 de Janeiro e do golpe. Esses processos eram fundamentais e não poderiam deixar de ocorrer.

Bolsonaristas dizem que a pacificação passa pela anistia ou por uma mudança na dosimetria. O senhor acredita nisso?

Aconteceu uma coisa no mundo que foi uma certa captura do pensamento conservador pelo extremismo. Não foi só no Brasil, aconteceu em muitas partes do mundo. O pensamento conservador, que é uma das opções legítimas da democracia — porque a democracia comporta correntes conservadoras, progressistas, liberais — significa basicamente a defesa do status quo, ou seja, preservar a ordem existente, ou admitir que, se a mudança for inevitável, ela deve ser incremental, lenta e progressiva. Isso é o conservadorismo. Os extremistas, ao contrário, são disruptivos. Eles não são conservadores, são contra as instituições. Querem destruí-las e não são claros no que desejam colocar no lugar. Portanto, no Brasil, também aconteceu essa confusão. Eu distingo muito o pensamento conservador do extremismo, e acredito que o pensamento conservador no Brasil, aos poucos, vai se distanciando desse radicalismo. Uma anistia imediata aos julgamentos faria com que tudo o que passamos não tivesse valido a pena.

Seria um retrocesso?

O direito penal tem muitas funções, mas uma delas é central: a prevenção geral. Isso significa que as pessoas deixam de cometer delitos pelo temor fundado de que, se o fizerem, serão punidas. Quando você pune alguém por um golpe de Estado, você está avisando que, de agora em diante, qualquer pessoa que tente um golpe será criminalmente responsabilizada. A história do Brasil sempre foi marcada por golpes, contragolpes, perdões e anistias. E isso nunca encerrou os ciclos do atraso.

O julgamento da trama golpista quebrou esse paradigma?

Este julgamento tem o papel exemplar para a História: mostrar que os ciclos do atraso ficaram para trás. Se você concede anistia, repete a história — e repete como farsa. E aí o Brasil continua preso ao ciclo de golpes.

E como o senhor avalia esse movimento no Congresso em relação à dosimetria ou à anistia?

Eu não participei desse debate quando ele voltou à pauta recentemente. Vou dizer com franqueza: eu já tratei desse tema em outra ocasião. Eu fui ao funeral do papa Francisco — o presidente Lula me chamou, assim como os chefes dos outros Poderes. O papa era uma figura que tinha um peso imenso no mundo. Nesse funeral, eu fiquei bastante tempo no transporte, engarrafado, inclusive, junto com o presidente Davi Alcolumbre e com o presidente Hugo Motta. Fomos os três na van e conversamos. Naquele momento — em abril — eu já havia votado, nos casos do 8 de Janeiro, por uma pena menor. Estava em debate a questão de que algumas penas estavam excessivas.

E como foi essa conversa?

Conversamos sobre a possibilidade de, por lei, prevalecer a minha posição, que não era de negar o Estado de Direito democrático, mas de ajustar a dosimetria. Eu até conversei internamente e era algo aceitável dentro do tribunal. Na ocasião, eu disse a eles que estávamos falando especificamente dos casos do 8 de Janeiro, em que algumas penas tinham ficado mais altas pela forma como a maioria aplicou a lei. Se prevalecesse a minha visão de não acumular penas, haveria uma redução de alguns anos, permitindo antecipar a saída de condenados após o cumprimento de parte da pena. Isso me parecia uma boa ideia, e foi a única vez que tratei do assunto.

Continua pensando da mesma forma?

Continuo achando essa solução palatável. O que eu considero problemático é uma redução casuística de penas, de simplesmente cortar pela metade, porque isso soa artificial. Além disso, acho que precipitaram o debate. Esse tema deveria ser discutido mais adiante. Qualquer medida que se pareça com um perdão imediato ou uma afronta às decisões do Supremo não é positiva institucionalmente.

E quais são os seus planos? O que o senhor pretende fazer ao deixar a presidência? Vai continuar no Supremo?

Eu ainda tenho alguns compromissos no tribunal e também compromissos acadêmicos. No fim de outubro, vou fazer um retiro espiritual. De vez em quando, faço isso em uma instituição ligada à Brahma Kumaris. É uma filosofia espiritual, não é uma religião. Já fiz retiro de silêncio, retiro de meditação, e agora vou fazer novamente um de silêncio, para pensar na vida de forma mais ampla. Não tenho uma razão específica para deixar o Supremo, mas já estou aqui há 12 anos e sinto que cumpri o papel que gostaria de ter cumprido. Tenho, portanto, as duas possibilidades na mesa: ficar, num lugar onde sou feliz e não tenho problemas, ou seguir outros caminhos. Eu tinha um professor que dizia que todo docente, depois de 10 anos de aulas, deveria jogar fora todas as fichas e recomeçar do zero, para se renovar. Acho que estou nesse momento: posso me repensar e decidir continuar fazendo o que já faço, ou escolher algo novo.

O senhor sempre pensou assim?

Quando minha mulher era viva, tínhamos um trato: depois da presidência, eu me aposentaria para viajarmos e aproveitarmos mais a vida. A doença dela precipitou esse processo, e eu já não tenho essa motivação específica. Hoje, posso ficar aqui, onde me dou bem com as pessoas e gosto do trabalho, ou sair. Preciso refletir se ainda faço diferença ou se é hora de alguém novo assumir.

Antes da toga, o senhor foi um advogado brilhante, com sustentações magníficas aqui no tribunal. Isso não o atrai?

Eu não poderia advogar aqui no Supremo, e não tenho vontade de voltar para uma advocacia intensa. Graças a Deus, no fim da minha carreira na advocacia, tive bastante sucesso e uma vida material confortável. Isso me permitiu dedicar-me a causas pro bono e de direitos humanos, que sempre me interessaram. Mas, como disse, aqui não posso advogar por três anos, e não penso em retomar uma advocacia pesada. Se eu saísse, talvez escrevesse minhas memórias. Gosto muito de educação e da vida acadêmica, e tenho vontade de criar uma instituição filantrópica para projetos que considero importantes.

Quais, por exemplo?

Sinto falta de poder pensar o Brasil e falar com mais liberdade, porque aqui no Supremo é preciso exercer certa autocontenção. O Supremo tem atrativos, como a visibilidade, mas fora dele também há atrativos, como a liberdade de pensar e expressar ideias. Por isso, digo que tanto o plano A quanto o plano B são bons. Tenho uma atitude de contentamento. O retiro vai me ajudar a refletir. Prefiro não dizer para onde vou, porque hoje em dia qualquer detalhe pode ser usado de forma maldosa. Mas será um momento de recolhimento, de silêncio, de repensar a vida.

Como gostaria de ser lembrado na presidência do Supremo?

Olha, eu gostaria de ser lembrado, na minha passagem pelo Supremo, como alguém que, em todos os momentos, procurou fazer o que é certo, justo e legítimo. Estou aqui há 12 anos e não tenho nenhuma decisão da qual me arrependa ou que eu diga que faria diferente. Em todos os casos, eu estudo, converso com a minha assessoria mais próxima, formo uma convicção sobre o que considero correto e decido. Não tenho medo de nada. E digo isso não por arrogância ou pretensão, mas porque tenho uma convicção muito profunda de que o universo protege as pessoas que se movem por bons propósitos. Portanto, mesmo diante de dificuldades ou de críticas, nunca me pergunto se deveria ter feito algo diferente. Estou convencido de que fiz o que devia fazer. Se algo ocorre, é porque precisava ocorrer por alguma razão que eu não conheço.

Assim na vida como no tribunal?

Penso a vida assim. Todas as manhãs, eu medito um pouco — uma meditação sobre valores e objetivos — para confirmar se estou vivendo de acordo com eles. Se constato que sim, sigo pela vida em paz. Se percebo que errei — e todos estão sujeitos a errar —, procuro corrigir imediatamente. Foi o que aconteceu no episódio da frase “Nós derrotamos o bolsonarismo”. Eu me expressei mal, reconheci no dia seguinte, pedi desculpas em nota oficial e esclareci que não me referia ao Supremo, mas à sociedade brasileira, e que o termo correto não era bolsonarismo, mas extremismo e intolerância. Foi um momento de vaidade, de ego. Mas eu procuro viver com paz interior.

Na festa de despedida, o senhor cantou uma música do Jorge Aragão. Eu estava tentando entender os sinais disso depois da sua fala… (risos)?

Eu gosto dele pessoalmente, foi mais por ele do que pela música, embora eu também goste da música. Sou fã incondicional de Chico Buarque, de Maria Bethânia e de Caetano Veloso. Essa é a trilha sonora da minha vida. O Diogo Nogueira, por exemplo, canta muito bem. Gosto bastante dele também, assim como de Jorge Aragão e de Alcione. Sou um carioca antigo, gosto dessa geração.

Essa mesma geração deu uma resposta importante para o país em relação à chamada PEC da Impunidade…

Certamente. Primeiro, gosto deles como artistas, mas também como cidadãos que têm coragem de se expor e defender o que acham certo. Eu sou uma pessoa que divide o mundo mais pelo caráter do que pela ideologia. Vivi nos Estados Unidos, em Michigan, com uma família conservadora, que era maravilhosa. Não tenho problema com conservadores; tenho problema com extremistas e intolerantes. Acho que Chico Buarque é o maior poeta brasileiro, ainda que musicado. Se o português fosse mais difundido no mundo, ele já teria recebido o Nobel de Literatura, pois sua obra é mais significativa do que a de Bob Dylan, por exemplo, que recebeu o prêmio. O Caetano, por outro lado, é um criador original, impossível de comparar com Chico, porque são universos distintos e igualmente extraordinários.

O senhor sempre recomendava um livro e uma música semanalmente, mas parou um pouco.

Um pensamento eu citei na sessão de quinta-feira e repito, do autor italiano Calamandrei. Ele diz que, para encontrar a justiça, é preciso ser fiel a ela, porque, como todas as realidades, ela só se revela a quem acredita nela. É um pensamento importante para quem escolhe viver o direito com seriedade e comprometimento. Outra frase que gosto: “Ninguém nessa vida é bom demais, ninguém é bom em tudo e, principalmente, ninguém é bom sozinho”. Usei uma citação de Vinicius de Moraes: “Bastar-se a si mesmo é a maior solidão”. Portanto, é o outro, na sua diferença, que nos completa. Há também uma frase mais simples, mas que explica bem a minha gestão: “Viver não é esperar a tempestade passar, é aprender a dançar na chuva”. E foi isso que vivemos: um período de tempestades, no qual tivemos que aprender a dançar na chuva.

E o que aprendemos na chuva?

Acredito que daqui a uns dois anos, talvez após as próximas eleições, vamos olhar para trás e reconhecer que fizemos coisas muito importantes para tornar o país melhor e maior. Somos um dos poucos países que resistiram ao avanço do populismo autoritário sem quebra da institucionalidade. Fizemos julgamentos difíceis, que poucos países enfrentaram, e saímos preservando a democracia.

E o futuro?

O Brasil do pós-eleição deve ser pacífico, ainda que não unificado. Divergências sempre existirão — conservadores, liberais e progressistas continuarão a debater, e isso é saudável. O que vamos recuperar é a civilidade e uma política de mais qualidade. Para isso, precisamos de reforma política. Defendo o voto distrital misto. É preciso que o eleitor saiba quem é o seu representante, para poder cobrar e decidir se o reconduz ou não. Hoje, muitas vezes, não importa a atuação parlamentar: se o político tem acesso a emendas, é reeleito. Isso enfraquece a representatividade e favorece aberrações como a chamada PEC da Blindagem, que só passa porque ninguém sabe exatamente quem votou a favor.

O que deve mudar, na sua visão, com a reforma política?

Precisamos de um sistema eleitoral que fortaleça o vínculo entre eleitor e representante, que melhore a política e devolva protagonismo ao Parlamento, retirando o excesso de centralidade do Supremo.

Retirar esse protagonismo do Supremo seria, então, também concordar um pouco com as críticas de que o Supremo às vezes exagera?

Não. O arranjo institucional brasileiro dá esse protagonismo ao Supremo. Porque a Constituição é muito abrangente, que trata de muitos temas que, em outros países, são deixados para a política e, no Brasil, foram trazidos para o direito, por estarem na Constituição. Além disso, é muito fácil chegar ao Supremo por meio de ações diretas, que podem ser propostas por muitos atores — inclusive, partidos políticos, que recorrem com frequência. Assim, parte do protagonismo do Supremo se deve à própria política: ou porque os partidos provocam o Tribunal, ou porque o Congresso não consegue legislar sobre algumas questões. Mas os casos chegam até aqui, e nós temos que resolver. Foi o que aconteceu com as uniões homoafetivas, foi o que aconteceu com as plataformas digitais. Portanto, um Congresso mais forte tende a diminuir o protagonismo do Supremo.

O Parlamento precisa atuar mais, então?

O Supremo é diferente do Congresso. Só desfazemos o que ele fez em casos de inconstitucionalidade flagrante. Mas a verdade é que muitos temas estão na Constituição e não foram regulamentados pelo Congresso, e aí acabam sendo tratados aqui. Vou dar um exemplo: a Constituição prevê o direito à saúde. Esse é um dos grandes problemas que tentei enfrentar na minha gestão, porque a judicialização da saúde desarruma o orçamento da União e dos estados. Nós estabelecemos alguns critérios que não estavam previstos em lei, como parâmetros para o fornecimento de medicamentos que não estão na lista do SUS ou de tratamentos não contratados pelos planos de saúde. Demos uma arrumada nisso, suprindo omissões do Congresso. Portanto, o protagonismo do Supremo não é voluntário, mas produto de um modelo. O constituinte de 1988, na verdade, não confiou muito nos Congressos seguintes. Trouxe muitos temas para dentro da Constituição, para deixá-los protegidos. Mas, ao fazer isso, acabou colocando-os no palco do Supremo.

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